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Missão

O CIAJG é um centro de arte contemporânea em Guimarães. A base do seu projeto cultural é a coleção do artista José de Guimarães, composta por arte africana, arte pré-colombiana, arte antiga chinesa, e um conjunto representativo da sua obra. A partir de formas culturalmente diversas de conhecer o mundo, expressas na coleção, o CIAJG realiza uma programação regular de exposições, artes performativas e programas públicos.


É no quadro desta atividade que concebe a sua missão. Ser diverso, inclusivo e plural. Construir públicos, criar sensibilidades e sentidos críticos. Participar no desenvolvimento cultural e social do território. Ser um lugar de experiências transformadoras. Preservar, pesquisar e difundir seu acervo. Acolher os olhares e discursos dos que o visitam e ocupam. Observar as narrativas da arte, expressões do pensar e do fazer artístico. Refundar o museu como lugar de fala e escuta, topografia redesenhada de ficções e histórias por contar.


Desde que iniciou a sua atividade, em 2012, o CIAJG tem vindo a afirmar-se como um projeto cultural de caráter experimental e discursivo, apresentando reflexões sobre as suas coleções, numa crítica contínua à ideia de museu. O CIAJG é uma estrutura polivalente ao serviço da comunidade, no âmbito local, nacional e internacional.  


SOBRE A COLEÇÃO


A coleção do CIAJG é composta por um conjunto de obras do artista José de Guimarães, assim como por arte africana, arte pré-colombiana e arte antiga chinesa, selecionadas pelo artista. No total, o acervo do CIAJG é composto por 1128 objetos, entre cerâmica, escultura, desenho, instalação, têxtil, pintura, pintura e artes gráficas. 

 

Os objetos de arte africana, arte pré-colombiana e arte antiga chinesa foram adquiridos por José de Guimarães entre os anos 80 e 2000 no mercado europeu especializado em objetos artísticos, arqueológicos e etnográficos, e cedidos em comodato ao CIAJG, servindo de base ao seu programa artístico. A seleção de trabalhos de José de Guimarães procura representar os sessenta anos de trajetória do artista no domínio da pintura, escultura/instalação e artes gráficas. 

 

Ao contrário de museus científicos ou de antropologia, a escolha dos objetos da coleção do CIAJG corresponde à sensibilidade de “artista-colecionador” de José de Guimarães, que neles se inspira, reelaborando continuamente um vocabulário sincrético de referências culturais de diversas partes do mundo.

 

Mais que um repositório patrimonial, submisso à imobilidade das catalogações historiográficas, o CIAJG procura estabelecer perspetivas cruzadas e críticas sobre o seu acervo e tornar visíveis as ligações que foram quebradas entre os objetos, narrativas e povos de origem. Uma das suas missões é o estudo do acervo no contexto das suas comunidades e das histórias da coleção, situando-os de forma mais ampla dentro da história da circulação de objetos etnográficos entre a Europa e África em geral, e especialmente nos séculos XX e XXI.

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José de Guimarães

Nasci na cidade de Guimarães, em Portugal, em 1939, cidade que, nessa altura rodeada de muralhas e campos era medieval na geografia e nos conceitos. Estudei aí até ao quinto ano, no liceu, onde os meus tempos livres eram ocupados em visitas aos poucos museus locais. Um deles pertencia a uma associação de arqueólogos que, a par da excelente biblioteca, possuía uma coleção de achados arqueológicos e cuidava da preservação da estação arqueológica conhecida por “Citânia de Briteiros”.


Esta minha convivência com as pedras arqueológicas e a natureza da região, fez de mim um arqueólogo amador. Recordo-me, aliás, de uma campanha de escavações realizada no norte de Portugal, organizada pela Universidade de Coimbra sob a direção de um professor da Universidade de Oxford.


Após ter terminado o sétimo ano de liceu na vizinha cidade de Braga parti para Lisboa, no sul do país. Seguiram-se sete anos dum curso de engenharia.

Porém, a par do curso universitário frequentei em simultâneo uma escola de gravura artística, tendo então começado a minha paixão pela arte e o desejo de vir a ser pintor. Estávamos em 1958 – aprendi as técnicas da gravura, dei os primeiros passos na pintura, frequentei cursos livres de história de arte e ao fim de sete anos tinha já uma inicial bagagem de pintor. A Pop Art era a corrente artística dominante.


Em 1967 parti para Angola, numa comissão de serviço militar, durante a guerra colonial. Iniciava-se assim a minha vivência/experiência africana, que haveria de prolongar-se por sete anos. Ao confrontar-me com aquele novo continente, o choque cultural não poderia ter sido maior. Porém, depois de uma desadaptação inicial surgiu um profundo interesse pelo conhecimento dessa nova cultura, embora distante da minha, ocidental, quer nas formas de atuação, quer nos seus conceitos. As manifestações artísticas das populações nativas traduziam-se, tanto em obras ditas de arte africana – esculturas, por exemplo – como em tatuagens ou pinturas murais, com os seus símbolos e sinais, umas vezes mais codificados, outras mais narrativos, como as de certas cenas domésticas, cinegéticas ou guerreiras.


Ao contrário da arte ocidental, o forte conteúdo mágico-religioso da arte africana transforma os objetos artísticos em obras de arte utilitária que se destina à prática de rituais. Em geral, são esculturas de figuração muito explícita, umas vezes mais misteriosas que outras, em virtude de determinados ingredientes – espelhos, pregos, ossos – passavam a ter uma forte carga mágica ou, como as tatuagens, por exemplo – bem caraterísticas dos povos africanos -, inscrições no corpo humano com intenções nitidamente mágicas, ou ainda as pinturas de sinais que, na pele dos homens, têm o poder de propiciar vitórias na guerra, e nas mulheres podem ter a função de invocar fertilidade, etc.

Mas as manifestações artísticas não se ficam por aqui. Por vezes, transformam-se em verdadeiros processos de comunicação – comunicação ideográfica, que funciona como se de verdadeira escrita se tratasse. Refiro-me a determinadas tribos da região de Cabinda, ao norte de Angola, como a dos Ngoyos, que se comunicavam entre si através de sinais ideográficos, inscritos nas tampas de utensílios domésticos – terrinas – uma espécie de altos-relevos com significados diversos, conforme a imagem utilizada nas suas mensagens, como se fossem provérbios de forte conteúdo moral, aliás muito mais eficazes do que porventura seriam se utilizassem a expressão oral.


Conforme referi, o primeiro contacto com esta nova cultura foi angustiante. Senti-me alheio e incapaz de entender o que quer que fosse. Este confronto demorou cerca de dois anos, extremamente difíceis por não dispor de parâmetros comparativos ou de pontes que permitissem transpor esta grande diferença de conceitos. Porém, com a ajuda de amigos etnólogos, pude debruçar-me sobre o estudo da etnografia africana, da angolana e da arte africana em geral, o que me permitiu chegar a um certo conhecimento do conteúdo das manifestações artísticas africanas que se apoiam em arquétipos culturais e sociólogos diferentes, ou até opostos dos meus.


A partir de 1970, já na posse de um certo conhecimento sobre arte africana e desejando utilizar a pintura como meio de comunicação e entendimento, efetuando uma espécie de osmose cultural entre as duas culturas propus-me a criar um alfabeto ideográfico composto por cerca de cento e quarenta caracteres gráficos. Posso, ainda, afirmar que a mais relevante transformação na minha pintura se deu após o entendimento da arte africana. Transformação que, sendo mais de conteúdo do que de forma, não exclui, porém, esta última. Eis o que, a propósito desta simbologia, escrevi em 1970: “A arte negra fez-me saber como se efetua a concentração do significar e da carga mítica das formas. E, assim, na minha pintura, a forma passou a ser símbolo e um agente de grande poder atuante.” Vi, em África, como eram usados os símbolos e para que serviam. Eles são, aliás, prerrogativa desse grande povo Ngoyo, de Cabinda, no norte de Angola, que tão magistralmente os sabe utilizar no quotidiano. Apropriei-me de uma parte da sua utilidade: mais do seu ritual do que dos próprios significados. As formas que lhes dei, essas, foram nascendo geradas e multiplicadas segundo o ritmo das circunstâncias e a necessidade de ampliar um vocabulário. Com símbolos, uns substantivos, outros adjetivos, uns emancipados, outros dependentes. Uns a gerarem os outros. A sua génese demorou dois anos (1970-1972). Anos de angústia e de intensa convivência com o mundo africano. Só depois houve diálogo e, com ele, a possibilidade de eu compreender melhor a cultura e o homem africano. E precisamente assim, através de um vocabulário misterioso e codificado, único diálogo possível que eu, como europeu, pude estabelecer com esse mundo africano de cultura poderosamente intuitiva e que se exprime com formas carregadas, todas, de um grande poder de intervenção.


Entre 1970 e 1974 realizei muitas obras, que hoje considero importantes no meu percurso artístico, origem e raiz de tudo o que faço hoje. Isto é, comecei a realizar uma obra que já não era a arte de um pintor europeu nem de um pintor africano, mas uma arte miscigenada de duas culturas. É uma arte de ambiguidade, se quisermos, “morfemas”, como lhe chamou Gillo Dorfles, transição entre pintura e escultura. Esculturas bifaces de dupla representação e duplo significado.

O alfabeto “africano”, ao qual outros se seguiram, como por exemplo o camoniano, o rubensiano, o mexicano, o chinês, etc., nunca deixou de estar presente em toda a minha produção artística, mesmo a mais afastada daquele período, funcionando como uma espécie de matriz ou trama, na qual se desenvolvem e progridem outros símbolos e códigos. Esta paixão por diferentes culturas fez com que, sempre que possível, tentasse rodear-me de objetos artísticos, seja da cultura pré-hispânica, da cultura chinesa ou da cultura africana. Assim recordo que, aquando da minha primeira estada em Angola, fiz uma pequena coleção de arte tribal, hoje no Museu de Arqueologia da Sociedade Martins Sarmento, de Guimarães. Mas foi a partir dos anos 70 que de novo comecei, lenta mas sistematicamente, a colecionar arte africana não só de Angola, mas principalmente de toda a região centro-africana, nomeadamente da Nigéria, Camarões, Gabão, Mali, Burkina Faso, Sudão, Congo, Guiné, Gana, Costa do Marfim, Togo, Benin, e que continua até aos dias de hoje. Entre eles, Mambilas, Mendes, Kanacas, Tchokwes, Baulés, Yaurés, Cabindas, Fungues, Bagas, Punos, Igbos, Markas, Bambaras, Dogons, Kotas, Noks, Iotubas, Iakas, Dans, Jukuns, etc., que hoje dialogam juntos nos meus ateliers lisboeta e parisiense e no novo Centro Internacional das Artes José de Guimarães, como se de templos se tratassem.


(...)


Fui parar a Angola, em 1967, por acaso, como por acaso, anos mais tarde, andei pelo México e, pelas mesmas razões andei pela Ásia (China e Japão) onde desde 1989, iniciei uma profícua colaboração que se mantém ainda hoje adivinhando-se novos projetos, futuros, muito diversos. E, o que é curioso, foi o ter sido a minha infância, passada em Guimarães, com a sua paisagem rural, as suas pedras, as suas montanhas, as suas manifestações populares, mistos de religião e paganismo, quem dominou os meus interesses espirituais. Depois veio a África através da cultura nativa, das suas manifestações artísticas, da arte tribal, das práticas e dos rituais; o México com as culturas Maia e Azeteca, a sua literatura, Juan Rulfo, a morte e o erotismo, o inframundo, e o “alfabeto mexicano”, a partir de arquétipos das culturas arqueológicas. E, quase em simultâneo os projetos japoneses, nomeadamente Kushiro, que me levou ao estudo dos Ainus, das suas tradições, das tatuagens, das vestes artisticamente decoradas, das suas crenças e práticas animistas e, de novo, a realização de sinais, símbolos e formas ideográficas que iriam servir de suporte ao longo do projeto de intervenção urbana de Kushiro. Não se ficando por aqui. Cito por exemplo o atual desenvolvimento de Setouchi (intervenção em sete ilhas do mar interior do Japão), que de novo me levou ao estudo sociológico de cada uma das ilhas da zona, para a realização duma série de objetos urbanos, integrando um vastíssimo projeto de reabilitação com uma participação internacional de arquitetos e artistas inaugurado no mês de julho de 2010. As mais de 400 obras públicas espalhadas por várias zonas do Japão são no seu conjunto o reflexo de que a abordagem antropológica é talvez a forma mais consentânea para uma melhor compreensão do meu processo artístico, que assenta na construção de alfabetos ideográficos, originados em culturas muito distintas, que as viagens me têm proporcionado.


Ainda estudante universitário, em 1961, visitei Paris pela primeira vez. As estadias em Paris tornaram-se frequentes. Recordo-me de em 1963, ter visto a grande retrospetiva que a França dedicou a Picasso – foi talvez uma das grandes emoções da minha vida. Passava as férias naquela cidade fantástica onde podia, ler, ver e admirar o que rareava em Portugal. Em 1995 instalei-me em Paris na Rue Quincampoix numa velha casa do séc. XVII.

A África, o México e a Ásia (China e Japão) foram as “culturas remotas” que formam a “estrutura de parentesco” que Levi-Strauss profundamente estudou. Áreas comunitárias onde toda a minha obra tem mergulhado, quer na descoberta de arquétipos quer na consciência tribal que as identifica e distingue. As obras mais recentes da série Brasil fecham esse ciclo e reencontram-se nas suas origens africanas.

Podemos resumi-las assim: ÁFRICA | MÉXICO | ÁSIA | BRASIL

As recentes passagens pelo Brasil transportaram-me aos “Yorubas”, escravos africanos, força anímica da fundação do Brasil. De novo, os símbolos da séria africana são usados nas recentes obras da Série Brasil, entrecruzando-se e misturando-se com os “papeles picados” mexicanos e a arte popular chinesa, criando a trama que suporta a estrutura do quadro ou formando a arquitetura das instalações “Favelas”: caixotes empilhados, por onde espreitam, em janelas ideográficas, palhaços e super homens, por entre vibrantes corações de néon que geram a energia, para uma espécie de guerra global latente.


Pierre Restany, grande sabedor das coisas e do pensamento, coração imensamente grande, que inventou a "Nova Figuração", refere no livro que me dedicou, intitulado “Le Nomadisme Transculturel de José de Guimarães”: "pode-se interrogar até ao infinito sobre as razões que levam um artista contemporâneo a adotar o nome da sua cidade natal. A motivação mais evidente parece ser a vontade de afirmar a sua ligação a um território específico - mas para tal é preciso que a localidade geográfica lhe sirva. A sua recordação das muralhas medievais que cercavam a cidade, antes da expansão dos anos setenta e da criação da universidade. A sociedade arqueológica Martins Sarmento, que quase o adota, curioso que era da história, as ruínas que abundavam e os rochedos, "penedos" graníticos do monte da Penha, o linho e a sua artesania, as cutelarias, os couros e o seu cheiro acre, os restos de cerâmicas romanas existentes nos castros da zona…" Estes eram os fatores que subliminarmente, seriam o húmus criativo dum universo plural, que arquétipos antropológicos haveriam de unir e dar sentido. Assim insistentemente "Guimarães" e a sua "Civitas", seriam indiscutivelmente o "Território" escolhido. E, há vinte anos atrás surgiu a ideia da criação de um lugar antropológico ou campo multidisciplinar onde se pudesse reunir e estudar a "arte" procedente de fontes heterogéneas.


Agora, que tenho lido em profundidade Levi-Strauss mais me convenço que tudo começou no dia em que, na minha juventude, fui arqueólogo amador e, onde, nos campos de escavação me estava destinada a tarefa de reconstituir em desenho, objetos de “terra sigilata”, das quais apenas possuíamos uns fragmentos.

José de Guimarães

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